O horizonte sombrio presente na capa desalenta logo de cara o leitor que pretenda encarar o mais recente livro de Samuel Malentacchi e avisa para o que está a vir. Junto ao título, em fonte ironicamente neon, o recorte da gravura de Doré, de 1861, representando o mitológico rio Estige, adverte: não se nomeia um livro de poemas como Tanatopraxia à toa.
Poeta de safra já conhecida pelos apreciadores da poesia contemporânea produzida em São Paulo, Malentacchi, que também é analista ferencziano, nunca polpa a si mesmo em seus trabalhos, sem qualquer pudor de expor de sua persona poética o que ela possui de menos agradável, de mais falho, destrutivo e incoerente. No limite, sua humanidade desdobrada a cada página entre o drama e a tragédia de ser.
Em Tanatopraxia, o que Samuel investiga é a morte em vida. As muitas formas como é possível tocar o morrer estando vivo. E a coragem com a qual o poeta efetua esta escritura é aguda e crua, como esta própria morte-vida também seja.
Correligionário de um certo estilo consagrado por poetas americanos, de Whitman à Carver, seu texto interpõe muitas vezes ao fato de ser poesia uma limpeza de artifícios poéticos que torna ainda mais impactante o resultado da leitura. Sem apelar para excessos metafóricos, ou construções imagéticas complexas, Malentacchi parece encontrar na própria falta destes recursos uma representação à altura do próprio discurso quando, por exemplo, anuncia:
do sentimento trágico da vida
a casa vazia respira em silêncio
enquanto me recolho no quarto.
da cama observo a janela aberta
e percebo que mais um dia se foi,
perdi mais uma batalha.
levanto e vou até a cozinha,
me sinto em outro lugar.
notei que as frutas apodreceram,
é sinal que o tempo fez o seu trabalho.
A figura de linguagem quando eventualmente surge, no entanto, serve ela também a dissolução de qualquer expectativa redentora:
minutos de sabedoria
a vida é uma tragédia na sala de espera
e deus é o médico atrasado para a consulta.
Este é também um livro sobre certo ateísmo sem orgulho, como ademais é sem qualquer orgulho que escreve o poeta o tempo todo, como fosse a própria poesia um esforço inútil e último de significar o insignificável: a própria vida. O deus ausente, no entanto, afeta o poema pela sua própria inexistência:
escrevo com o fim entre os dedos
enquanto desosso o rastro da noite.
estou dentro do colapso da voz de deus.
---
penso em todos os deuses que não tive,
acho que não fui um bom fiel.
uma intervenção divina mataria a minha fome de fé,
mas certamente não resolveria os meus problemas.
---
alcancei um tipo curioso de iluminação.
numa espécie de anti-ritmo da vida,
o nada é a ferida narcísica de deus.
Ou, ainda, um livro sobre como a impossibilidade de um deus exterior aponta para a única deificação possível: a do poeta como sua própria divindade, impotente e louca:
há um deus obscuro em mim,
ele se alimenta da destruição
que meu destino suporta
(...)
há um deus obscuro em mim,
ele retalha o instante na tentativa
de voltar a ser eterno.
eu permaneço danificado
---
é daqui que pratico a morte do mundo,
é daqui que nasce toda devastação
que meus hábitos insistem em carregar,
é daqui que arranco o cerne dos deuses
para suportar o desespero dos minutos.
Este desalento todo, que age continuamente pela negação, está presente em outros livros do autor, mas aqui ganha novos paroxismos:
registro de desintegração
estou oco por dentro,
não há mais nada por aqui.
tudo o que me fez ser quem eu sou
foi destruído. restaram os cortes.
eles me lembram que ainda estou vivo.
---
nada costura meu desamparo
a vida continua a mesma
apesar do meu deslize.
tudo segue como deve ser
eu só não estou preparado
talvez nunca estarei
no final
das
contas
Ao final das contas, Samuel Malentacchi escreve contra. Contra tudo o que a poesia tem pronunciado em todos os lugares onde ainda é cultivada. Seu texto, contemporâneo, é imbuído de um espírito simbolista que vê o poema como meio de tradução de nossa danação, como continuidade mesmo dela.
Ao final das contas, Samuel não escreve pra ninguém, em muitos sentidos. Nem mesmo para ele próprio, já que sabe que nenhum poema sequer pode resultar em qualquer coisa para além de si mesmo:
a casa vazia conspira em silêncio
enquanto da cama escrevo um poema
que certamente não fará diferença alguma.
---
escrevo para não ver a terça-feira.
não sou mais o que fui,
não espero nenhuma salvação,
eu escrevo porque minha vida apodrece.
Só resta a tudo a tanatopraxia. Quem sabe, uma grande arte maior que a poesia e ainda não reconhecida.
carlos andré
nov/2024
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